O dia em que dormi na rua



     Aos poucos vão sabendo as minhas melhores aventuras em viagem. Já partilhei momentos verdadeiramente hilariantes, embaraçosos e até aqueles de tirar o fôlego. Este é quase um segredo. Por norma quando me acontecem coisas fora do normal, que inevitavelmente é em todas as viagens, partilho sempre com os meus familiares. Às vezes até acho que eles ficam ansiosos de ouvir o telefone tocar para saber o que aconteceu. Desta vez não foi assim.

      Tal como referi ao contar sobre o dia em que parei um comboio, durante o meu InterRail, durante o fim de semana é comum as linhas ferroviárias estarem fechadas para reparação e, estas ligações, são normalmente asseguradas por autocarros. Como deves calcular, desta forma, o tempo de viagem é bastante superior e isso pode ter algumas consequências. Tem isto em atenção, porque não são casos isolados, é mesmo o habitual em praticamente todos os países da Europa. Sempre que tiveres de viajar de comboio ao fim de semana durante a noite, confirma mesmo se é possível fazer esse percurso. Não cobro nada, mas devias agradecer-me esta informação, é que a mim custou-me uma noite na rua...
     Desta vez não é nenhuma metáfora, infelizmente aconteceu mesmo. Tinha partido de Amesterdão e o destino era Berlim. Segundo a rota que tinha planeado, para lá chegar tinha de apanhar sete comboios, o que daria uma noite inteira de trocas e viagens até às 10h da manhã. Visto que a linha que liga Amesterdão a Eindhoven estava fechada, tive de seguir de autocarro até Venlo, uma cidade que faz fronteira com a Alemanha. Esta seria a terceira paragem. Aqui, as anotações que fiz durante a viagem não estão completas, mas, se a memória não me falha, seria perto da 1h da manhã quando cheguei.

Estava noite cerrada, frio de início de outubro, uma chuva miudinha. Estavam cerca de três pessoa à porta da estação, inicialmente pensei que pudessem estar apenas a fumar um cigarro. Sem grandes preocupações naquele momento, dirigi-me à porta para entrar na estação. Tentei uma, duas e três vezes, a porta não abria. Olhei para o letreiro, já que normalmente troco sempre o “puxe” e o “empurre”, mas desta vez não era o caso. Estava mesmo fechada e tinha um aviso que dizia que a estação reabria às 5h da manhã. Faltavam quatro horas... Durante o dia, quatro horas de espera custam a passar, mas quatro horas durante a noite, parecem uma eternidade! Realmente foi. Foram 240 minutos de puro aborrecimento e desespero. Mais uma vez repito, era noite cerrada, estava frio e a chuva miudinha não parava de cair.
Para dois jovens pernoitar até às 5h da manhã não parece nada difícil. Verdade. Quantas vezes já o fiz! Mas não naquelas circunstâncias. Era o sexto dia de viagem do InterRail e os pés certamente já contavam com uma centena de quilómetros feitos em estrada, fora os milhares em carris. Ainda assim, não era o fim do mundo. Contam-se umas piadas, jogam-se uns jogos, faz-se um balanço do que já se viu até aqui, quais as expectativas do que ainda falta ver e pensa-se na vida. No entanto, chega a um ponto que já não há nenhum jogo para jogar, já não há mais nada para conversar. O corpo começa a pedir para dormir. Foi isso que, de um a um, as três pessoas que inicialmente estavam à porta da estação fizeram. Essas e mais duas que chegaram entretanto.
Felizmente em frente à estação havia um grande espaço coberto com vários bancos. Pelo menos a chuva não chegava lá, mas ainda assim não era o sítio mais confortável onde já tinha estado. Acabei por ceder e fiz da mochila uma almofada e o saco-cama servia para amenizar a temperatura. Tentava fechar os olhos mas não sentia segurança suficiente para adormecer. Sabia lá quem podia aparecer por ali! Não estava preocupada se me podiam fazer mal, não era isso, tinha apenas algum receio que  me pudessem levar a carteira. Ficar sem dinheiro é chato, mas sem documentos era o fim de toda a viagem.
Sabem quando estão a adormecer mas continuam a ouvir tudo o que está à vossa volta? Foi assim a maior parte do tempo, até que a muito custo lá “passei pelas brasas”. O pior é que não foi durante muitos minutos, porque dois ou três adolescentes estavam alcoolicamente divertidos, como é de esperar num sábado à noite, e começaram a gritar para todos os que ali estávamos “guten morgen!!”. Não amiguinho, não foi uma boa noite e muito menos, agora com a tua presença, é um bom dia. Foi tudo o que pensei mas nada disse. O único ponto positivo que me ocorreu foi que, se era o fim da noite para aqueles jovens, talvez pudesse realmente estar a aproximar-se o final da noite para mim também! Bem, já tinha passado mais algum tempo, mas não era o suficiente.
Naquele sítio já não conseguia ficar mais. Fomos dar uma volta pela zona, mas a chuva ameaçava novamente e não havia nada para lá de um bairro habitacional. Ao regressarmos à estação, acabámos por nos abrigar na entrada de um prédio e por ali ficámos cerca de uma hora. Era ver o tempo a passar e a chuva a cair. Talvez tenha sido o único momento de uma viagem que desejei teletransportar-me para casa. Estava a ser vencida pelo cansaço.
Ainda não eram 5h da manhã e já mais pessoas esperavam que a porta da estação abrisse. Eu era uma delas. Continuava a não ser o cenário perfeito, mas pelo menos, acima da minha cabeça, havia um teto e um ambiente quente. Tal como disse, não tenho as anotações corretas deste dia de viagem, apenas uma nota com o sucedido. Talvez o objetivo fosse esquecer este episódio, não sei, mas não me parece. Tal como se vão aperceber, tudo o que partilho das minhas aventuras são situações que, de alguma forma, me marcaram, tanto boas, como más. Viajar não é apenas conhecer sítios dignos de tirar fotografias para partilhar nas redes sociais. É, acima de tudo, recolhermos todas as experiências e fazer com que elas nos sirvam para aprender e refletir sobre algumas questões.

Muito do tempo em que estive sentada naquele banco coberto daquela estação, estive a pensar. A pensar na realidade das pessoas que não têm uma casa durante todo o ano, que não pertencem a sítio nenhum e não têm nada. Que sentem aquele frio muitas noites seguidas. Que, tal como eu fiz, contam o tempo que falta para amanhecer. No entanto, ao invés de mim, eu tinha um destino definido. Era Berlim, onde cheguei às 13 horas. Provavelmente, o destino deles é o mesmo banco ou mesmo alpendre do anoitecer do dia anterior.

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