O dia em que parei um comboio

         
                                                                                                           (Imagem Pixabay)

    Toda a gente tem histórias para contar, por vezes nem é preciso muito para que esse momento fique gravado para sempre. Tenho uma lista bem interessante de aventuras, umas realmente muito engraçadas, outras que só eu é que acho piada e outras realmente muito estupidas. Esta, até ao dia de hoje, é a única que não consigo caracterizar. Talvez tenha sido um misto de muitas coisas, mas posso garantir que não foi divertida, não deu para rir, que cheguei a sentir medo, desespero, insegurança e todos os sentimentos negativos que possam estar a pensar numa situação de aflição. Não pensem que estava a atravessar a linha e ia sendo atropelada, credo! Não! A história é bem mais complexa do que isso.
    Aconteceu em 2014 quando estava afazer o meu InterRail. Ia partir de Florença (Itália) e o meu destino era Genebra (Suíça). Não havia nenhuma ligação direta, então tinha de trocar várias vezes de comboio até lá chegar. Para rentabilizar o tempo, a melhor forma de fazer estas viagens mais longas é à noite. No entanto, algo que têm de saber se pretendem fazer um InterRail, é que para todas as viagens noturnas é necessário fazer reserva e pagar uma taxa extra (podem fazê-lo no site ou na própria estação). O meu trajeto seria seguir para Innsbruck, na Áustria, depois para Zurique, já na Suíça, e aí finalmente ir até Genebra.
    Basicamente, Florença tinha sido o final da viagem, neste momento já era altura de começar o trajeto de volta para casa. No entanto, tinha de ir até Genebra para visitar o meu pai, que está emigrado, e este era o ponto mais próximo do local onde se encontrava. Pela primeira vez, em tantas viagens noturnas que já tinha feito, não tinha lugar naquele comboio. Caso não conseguisse ir ali, era impossível ver o meu pai. O meu bilhete do InterRail só tinha mais dois dias de validade, seria um para o ver, outro para regressar a Portugal.
    Expliquei esta situação ao revisor do comboio, ele compreendeu e tentou por tudo ajudar-me. Pediu-me que entrasse com ele na carruagem e estava confiante que conseguia encontrar uma solução. Sabem aquelas situações à filme? Com um pé na primeira escada da carruagem, olhei para o relógio que tinha no pulso. Faltavam precisamente 11 minutos para o comboio partir. Tinha 11 minutos para encontrar dois lugares. Comigo tinha uma sweatshirt e dois telemóveis, o meu e o do meu parceiro de viagem, que usei para mostrar o nome da cidade para onde queria ir, não tinha mais nada. Entrei no comboio. Também eu estava confiante, nunca tinha visto um comboio tão grande! Eu e o revisor começámos na primeira carruagem, olhávamos para todos os compartimentos e ele ia vendo no sistema o número de bilhetes vendidos. Era sexta-feira à noite, aparentemente as escolas iam em visita de estudo para os alpes austríacos, todos os corredores que continuávamos a passar estavam cheios de adolescentes, a maioria bêbedos, que mal nos deixavam circular. Gritos, música, encontrões, garrafas, copos e batatas fritas pelo chão. Neste momento já estava em passo apressado e a perder a esperança. O revisor continuava “vamos ver mais uma, vamos até à próxima, talvez na seguinte tenha sorte”. Nada. E o tempo contava.
    Quando eu já queria desistir ele disse que íamos falar com a colega dele, responsável pela segunda metade do comboio, que ia para a Alemanha. O quê?!! O que é que estava a acontecer?! Eu estava num comboio onde não tinha lugar, que dali a alguns quilómetros se ia dividir, metade para a Áustria, metade para a Alemanha, no qual eu já nem sabia em que metade estava, com dois telemóveis na mãos e uma sweatshirt, rodeada de adolescentes bêbedos que não me permitiam sequer pensar. Era o fim, já não queria saber. Ia sair dali e logo arranjava uma solução.
    É precisamente neste momento que ouço o som das portas a fechar e a trancar e começo a sentir uma ligeira sensação de movimento. O comboio estava a partir. Instalou-se o pânico. Comecei a tentar abrir as quatro portas que estavam próximas de mim. Disse ao revisor que tinha de sair, que não estava ali sozinha e não podia ir naquele comboio. Acho que ele ficou branco, azul e de todas as cores. Seguiu à minha frente a correr que nem um louco enquanto gritava pelo altifalante que o comboio tinha de parar. Eu seguia atrás dele a correr que nem uma maluca, enquanto fazia contorno de obstáculos pelos objetos que estavam no chão e literalmente dava encontrões a quem estava no meu caminho. Acho que durante breves minutos não respirei. O que fazia eu ali, num comboio que ia para dois países diferentes, com a roupa do corpo e dois telemóveis, que não me permitiriam falar com a outra pessoa, não tinha dinheiro, não tinha nada. Depois de ter atravessado algumas carruagens, o comboio para e as portas abrem. O revisor dá-me cinco minutos para sair do comboio e voltar a entrar. Quando olhei pela porta onde estava, não conseguia ver a última carruagem, imaginem a dimensão que tinha e o que eu já tinha andado! Corri, corri, corri, com forças que nem eu sabia que tinha. Lá ao longe via o meu parceiro a tentar acompanhar o comboio, que com ele carregada duas mochilas de viagem, um saco que tínhamos com comida, uma mochila com máquina fotográfica, uma outra mochila pequena e ainda um saco com duas pinturas que tinha comprado em Roma. Obviamente que ele estava bem transtornado e chateado depois de ver o comboio a andar. Ainda assim, sem mais demoras, peguei nos meus pertences e entrámos novamente no comboio. Continuava sem saber bem o que fazer, mas pelo menos estava ali e ia conseguir ver o meu pai. No meio daquela confusão toda, a solução era ficar num compartimento com beliches, onde tinha de pagar mais, bem mais, mas era o que se arranjava, já não queria saber. Andei novamente até à senhora responsável pela segunda parte da carruagem, era alemã, com um sotaque bastante carregado e pouco simpática. Tivemos de pagar 55€ por seis horas de trajeto, ficou com os nossos cartões de cidadão e disse que quando estivéssemos a chegar ao destino nos acordava e devolvia os documentos. Assim foi. Mal pousei as mochilas e me sentei, não queria acreditar no que tinha acabado de acontecer. Foram provavelmente os 11 minutos mais stressantes da minha vida. Tinha o coração a mil e a adrenalina estava em máxima. Deu-me uma grande vontade de rir, mas já não tinha força para isso.  

    Às 4:30h da manhã estava finalmente em Innsbruck, em 20 minutos estaria num outro comboio a caminho de Zurique. Naturalmente que o corpo já se ressentia pelos 20 dias de viagem. Estava cansada, especialmente pelo frenesim das últimas horas. Queria realmente que o resto da viagem fosse tranquila e desse para descansar mais um pouco. Mas, obviamente que não aconteceu. Outra das coisas que têm de saber se pretendem fazer um InterRail, é que ao fim de semana a maioria das linhas da Europa estão paradas para manutenção. Era este o caso! Já me tinha acontecido numa outra ligação, portanto sabia que tinha de encontrar uma placa de informação onde dizia o local onde podia encontrar outra placa para então aí saber onde podia apanhar um autocarro que fazia essa ligação em vez do comboio. Mais uma agitação e uma corrida. Estive certamente mais de meia hora na rua, com um frio desgraçado, à espera de estar no sítio certo. Felizmente estava e há males que vêm por bem. O autocarro fez o trajeto pelos alpes austríacos até à Suíça, o que me deu oportunidade de ver um dos nasceres do sol mais bonitos de sempre! As montanhas pontiagudas cheias de neve, num tom alaranjado que é impossível descrever. Horas mais tarde recebi um abraço do meu pai que já não via há dois meses. Comi feijoada ao almoço, já não comia algo “caseiro” há 21 dias. Parece que tudo acabou em grande :) Acima de tudo tenho de agradecer ao senhor revisor. Não sei o nome dele nem o consegui encontrar mais, mas, no fundo, é a ele que devo esta aventura que nunca conseguirei caracterizar.

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