O dia em que fiz 786km para ver uma praia

    Quem costuma seguir as minhas aventuras já sabe que sou eu que planeio e desenho todo o roteiro de todas as minhas viagens. Tenho por hábito abrir o mapa e, antes de pisar esse solo, vaguear virtualmente pelas terras que vou conhecer. Anoto um ponto e isso leva-me a outro. Às vezes dou por mim já nos países vizinhos com mais uma rota traçada a mais um destino a acrescentar à lista. É sempre assim e não tenho como contornar isso, nem quero.
    A ida à Islândia foi especial em termos de planeamento. Foi a primeira, até então, que estava a construir de raiz e não conseguia decorar os nomes dos sítios que tencionava conhecer. O islandês é impronunciável e isso levou-me a criar um novo método que, por ter resultado tão bem, passei a utilizar sempre, até em território português. Ora, não é mais do que imprimir um mapa e o assinalar, à mão, com diferentes cores. Isso permite-me ter uma noção mais aproximada das distâncias e dos espaços, evitando que às vezes ande para trás e para a frente porque afinal o monumento A fica ao pé do museu B. É verdade, criei o meu próprio instrumento e, apesar de rudimentar, tenho muito orgulho nele. Hoje, seria incapaz de partir sem a meia dúzia de folhas de notas que são mais valiosas do que a roupa que ponho na mala. Em caso de infelicidade da mala extraviada, duas ou três peças novas remediavam o caso, mas ficar sem os meus planos já delineados, seria perder os objetivos já traçados. Nem quero pensar nisso!


    No caso da Islândia, fui ainda mais longe. Como estava com dificuldade em associar os nomes aos lugares, sobretudo o das várias cascatas, fiz uma folhinha à parte com a imagem e o nome de cada uma. Assim não tinha nada que enganar. A esta altura deves estar a pensar que me falta um parafuso ou dois, que raio de técnica esta de fazer mapas próprios com cores e ter imagens com nomes dos lugares, que mais parece um exercício de escola primária. Bem, em 2018 acho que conhecia apenas uma pessoa que tinha estado na Islândia, que pouca ajuda me deu quando pedi por sugestões. Fui juntando umas pecinhas aqui e outras ali de blogs portugueses, mas inevitavelmente tive de me focar mais nos de língua inglesa. Se fizeres uma pesquisa agora informação não vai faltar e, mesmo parecendo que 2018 foi ontem, acredita que não tem nada a ver com aquilo que procurei e pouco encontrei, pelo menos da forma como queria. 
    E agora perguntas tu: “mas que raio é que isto tem a ver com o dia em que fizeste 786km para ver uma praia?”. Tem tudo. 
    No meio de pesquisas a colocar um ponto aqui e outro ali pelo meio do Golden Circle, uma das zonas mais interessantes a conhecer, dei por mim mais à direita do mapa e fui “parar” à Diomond Beach, a Praia dos Diamantes. Se o nome é sugestivo, as imagens são arrebatadoras. Consegues imaginar uma praia de areia preta cheia de icebergs gigantes reluzentes? É que é isso que ela é. E eu tinha de lá ir. 
    Sempre que acontecem situações semelhantes a esta, como pensar que “de Dubrovnik a Kotor, no Montenegro, são menos de 100km, e por menos de 150km vamos outro dia a Mostar, na Bósnia-Herzegovina” ou “quando regressarmos de Munique a caminho da Suíça podemos ir jantar ao Liechtenstein”, não há volta a dar e é para fazer acontecer. Às vezes sei que perco noção do espaço (até do tempo), mas até então nunca me arrependi e isso foi tudo porque percorrer esses 786km me deu força para repetir a gracinha (neste caso, os “desvios”...).
    Reservei o terceiro dia na Islândia para fazer o maior percurso até então. Estava alojada nos arredores de Reiquiavique e acordei bem cedinho para me fazer à estrada. Uma coisa era garantida, podia andar por lá até às horas que quisesse porque luz não me ia faltar. Nesta altura do ano não anoitece! Obviamente que quando pensei neste trajeto não era apenas um ida e volta, inclui sítios para conhecer tanto na ida como no regresso. A primeira paragem foi na maravilhosa Seljalandfoss, uma cascata única em que é possível passar por trás dela. Já estavam feitos os primeiros 128km de 381km. Faltava agora uma quase ida de Lisboa (onde moro) para a Covilhã (de onde sou natural), trajeto que faço pelo menos uma vez por mês para visitar a família, não era, por isso, “nada de especial”. 
    Confesso que depois da visita à Seljalandfoss e percorridos mais uns 100km, comecei a ficar impaciente e questionei-me se valeria a pena aquilo tudo. Comecei a cair na realidade que eram muitas horas no carro e coloquei em causa se não deveria estar a conhecer sítios mais próximos. Num momento de loucura, aborrecimento ou talvez lucidez, disse ao meu namorado para parar e voltar para trás. Ele recusou prontamente, agora íamos até ao fim.
    Fizemos várias paragens para apreciar a paisagem, que é sempre linda, até mesmo quando parece que é igual há meia hora. Durante grande parte do tempo éramos apenas nós naquela estrada. Passava um carro muito de quando em vez. Deu para refletir sobre o isolamento de quem vive por ali. Passámos por pequenas aldeias, se é que se chamam assim, onde às vezes nem se contavam dez casas, com distância suficiente para nem se perceber se o vizinho lá está. Vimos mais cavalos selvagens do que habitações, isso é certinho, mas também mágico!
    Passadas umas seis horas desde que saímos do hotel, chegámos. Decidimos ir primeiro a Jökulsárlón, um lago que se formou pela ação do degelo do Breiðamerkurjökull (já percebeste a questão dos nomes impronunciáveis, não já?), que faz parte do Vatnajökull, o segundo maior glaciar da Europa e também um dos maiores do planeta. Tinha visto uma ou duas fotografias deste sítio e também contava ver blocos de gelo a flutuar nestas águas. O que não esperava de maneira nenhuma é que este ia ser dos lugares mais bonitos do mundo onde já tive oportunidade de estar! 
    A entrada fica muito próxima da beira da estrada e há um grande largo para estacionar o carro. Entre manobras, vi um azulão lá ao fundo que me deixou o coração aos saltos. Saí imediatamente do carro e não consigo esquecer a minha reação quando vi aquele cenário... Sabes aquela inspiração profunda que te deixa sem fôlego nem voz quando apanhas um valente susto ou acordas de um pesadelo? Foi assim, mas de admiração! 


    Este lago tem 18km2 e uma profundidade máxima de 284 metros. À direita estão montanhas negras cobertas de neve, a partir daí, tudo ao redor é um manto branco que vai além do que a vista consegue alcançar, é o glaciar. À frente estão dezenas, se não centenas, de icebergs de todos os tamanhos, uns brancos, outros de várias tonalidades de azul, alguns completamente reluzentes. São verdadeiros diamantes! Aqui estou eu, de olhos a brilhar, sem conseguir acreditar no que estava a ver. Por momentos não consegui dizer nada de jeito. Mas bem, pelo menos aqui não havia problema nenhum... Em 2009, na República Dominicana, fiz snorkelling primeira vez num recife de coral – também dos cenários mais impressionantes que já vi – mas tal era o meu espanto que estava constantemente a abrir a boca, por isso engoli litros de água salgada...


    Ainda que isto seja resultado do degelo proveniente das alterações climáticas, é um cenário perfeito! Tornou-se ainda mais quando olhei com atenção ao ver a água mexer em vários pontos, eram focas. Focas a nadar em habitat natural! Dezenas delas. Talvez tenha ficado tão encantada por não ter lido muito sobre o local, talvez não lhe tenha prestado a atenção devida nem assinalado como um lugar obrigatório a visitar, sinto-me até um pouco ignorante por nunca ter tido conhecimento dele, mas sinceramente, talvez tenha sido melhor assim. Que surpresa tão boa! 


    Aqui há tours de barco que te levam ao pé dos icebergs para os observares mais de perto. Como tudo na Islândia, o bilhete era para lá de caro. Não equacionei fazer o passeio e também não me arrependi, já estava suficientemente feliz. Estávamos em maio e se tivesse vindo um mês antes aí sim, queria entrar numa caverna de gelo, mas nesta altura do ano já não era possível por motivos de segurança, o gelo já estava a derreter. Foi isso que também me levou a ter o que chamo de “momento National Geographic”, que foi assistir à quebra de um glaciar. Estás a ver aquele som que se ouve nos documentários dos blocos de gelo a rachar e a cair na água? Foi isso mesmo. É impressionante! 
    Passei horas aqui. Percorri o redor do lago, tirei (muitas) fotografias e fiquei muito tempo sentada só a observar. Na verdade, podia ficar ali o dia todo só a fazer isso, de certeza que não me ia cansar. 


    Este lago, chamado de Glaciar Lagoon, tem uma abertura que vai dar ao mar, a poucos metros dali. São estes mesmo glaciares que empurrados pela força da água, passam por esse canal que vai dar ao mar e, pela ação das ondas, são devolvidos à praia. É isso que está na origem da Praia dos Diamantes. A praia que me levou até ali. A fasquia do dia já estava muito alta, mas ainda bem, é que se fosse só pela praia em si, a minha reação talvez tivesse sido “viemos aqui por isto?!”. Era maio e as temperaturas já rondavam os 10oc, então os grandes icebergs que esperava ver na areia não passavam de pequeníssimos restos de gelo, do tamanho de uma mão, que tinham sobrevivido no caminho até ali. Em meses mais frios sim, tenho a certeza que a fasquia ia ficar quase ao mesmo nível e provavelmente é mais um cenário do outro mundo que não tem descrição. 


    No regresso a Reiquiavique fiz uma paragem na cidade de Vík Í Mýrdal, que também tem uma praia com um cenário bastante famoso, e ainda na Skógafoss, mais uma cascata deslumbrante! Já eram 21h e continuava completamente de dia. É nestas alturas que dá vontade de agradecer, não importa ao quê ou a quem, mas às vezes é mesmo preciso agradecer por estarmos a viver experiências assim.
    Neste dia percorri 786km. É o equivalente a ir e voltar de Lisboa a Viana do Castelo, de Coimbra a Vila Real de Santo António, da Guarda a Beja, do Porto a Évora, e ainda ficam a sobrar quilómetros. É também quase como ir de Lisboa a Madrid. É fazer mais do que de Chaves a Faro, a nossa mítica Estrada Nacional 2, com 739km, a terceira maior estrada do mundo. Foram 786km para ir a uma praia, mas esta história não é sobre os 786km que fiz nem sobre uma praia, este é o relato de uma memória sobre a Glaciar Lagoon, um dos sítios mais bonitos que já vi na vida, e que para isso tive de andar 786km num dia, com o propósito de ver uma praia de areia preta com glaciares reluzentes. 


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