Da favela ao Vaticano





Na primeira parte desta entrevista:

“O português que fez história na Palestina”

Luís Cipriano é maestro e compositor. No ano 2000 esteve na Palestina onde estreou uma obra para a celebração dos 2 mil anos do nascimento de Cristo. A cidade de Belém foi fechada e a cerimónia foi transmitida por 46 estações de televisão internacionais. Só daqui a 982 anos é que outra pessoa terá possibilidade de passar pela mesma experiência. Se ainda não viste, clica AQUI

Eles por Lá - Ep. 2 (parte 2) 


"Da favela ao Vaticano"








Blog 100 fronteiras: Qual foi a situação que mais o chocou nesta viagem?

Luís: Foi quando eu resolvi ir de autocarro para Jerusalém, sem guias e sem segurança. Mais uma vez pedi ao meu amigo do hotel, o Mohamed, para me arranjar um transporte barato até lá. Um transporte barato era um autocarro todo partido e sem vidros. A parte da frente era só mulheres e a de trás era só para homem. Não fiquei muito à vontade mas pensei “vamos lá ver o que isto vai dar”. Eu queria experimentar isto porque ao andar em táxis, carros blindados e com seguranças, não conseguia testar a segurança do país para depois levar o coro e a orquestra. Tinha de perceber por mim próprio, se fosse sozinho, como é que era. O autocarro arrancou e, passados alguns quilómetros, parou. Saíram os homens todos, fiquei eu e as mulheres. Passado um tempo entra a tropa israelita. Eram quatro, armados até aos dentes. A pedirem a identificação às mulheres era a baterem-lhes com a ponta da arma. Eu estava a assistir àquilo tudo e quando eles olharam para o fundo do autocarro deram conta que eu estava ali. Passaram-se. Houve um que me apontou a arma e me pediu a identificação. O meu receio aqui não era ter a arma apontada, só tinha receio que ela disparasse. Ele também me podia interpretar mal, porque para tirar os documentos tinha de pôr a mão no saco que trazia. Dei-lhe o passaporte e ele perguntou o que era Portugal. Lá viu as estrelinhas da Comissão Europeia, percebeu o que era e quis saber o que tínhamos estado a filmar. Não tínhamos filmado nada e lá nos deixou seguir. Dois quilómetros depois, do meio dos arbustos, saem os homens todos e entram para dentro do autocarro. Havia ali um checkpoint, eles sabem e então têm um caminho alternativo. Assim foi uma viagem típica entre Belém e Jerusalém. Não há agência de viagens que me consiga proporcionar uma coisa destas.

Blog 100 fronteiras: Às vezes é muito por aí. Estas experiências marcantes, boas ou más, não se conseguem de outra forma.

Luís: Exatamente. Outra experiência gira na Palestina foi 10 dias a comer cabra. Cabra ao almoço e cabra ao jantar. Eu lembro-me que o pessoal da orquestra e os mais novos do coro pediram-me para ir falar com o cozinheiro para fazer alguma coisa ocidental. Eu falei com ele, mas não lhe disse que estávamos fartos de comer cabra, disse que estávamos com saudades da nossa comida. Ele perguntou se gostávamos de hambúrgueres e eu disse “claro”. No ensaio seguinte, às cinco da tarde, disse que o jantar seriam hambúrgueres. Foi uma festança! Fomos jantar e o hambúrguer era de cabra… (risos)

Blog 100 fronteiras: Estas experiências também são uma forma de abrir mentalidades e viver outras realidades.

Luís: Sim. Eu posso dizer que quando estive com o coro na Venezuela, eles (organização) tinham marcado um hotel de 5*. Não é que o coro não merecesse, mas achei que era demais. Já tínhamos estado em vários países a ser muito bem recebidos, pensei que se depois não tivéssemos essas mesmas condições eles iam começar a reclamar. Liguei para a Venezuela, desmarquei o hotel e marquei um orfanato no meio de uma favela. Quando lá cheguei e encarei com aquilo só não bati em mim próprio porque parecia mal. Aquilo foi a loucura. Nós não tínhamos água. De manhã vinha um carro dos bombeiros e nós íamos buscar água com um balde para tomar banho. Estávamos fechados porque podíamos ser assaltados. Éramos guardados por pessoal armado até aos dentes. As miúdas do orfanato dormiam no chão para nós podermos dormir nas camas. As camaratas onde dormíamos nem sequer tinham janelas. Isso foi uma educação para muitas das nossas miúdas que na altura tinham 12/13 anos. As escolas dizem que há países pobres, viver no meio da pobreza é completamente diferente. Posso dizer que as miúdas deixam lá praticamente a roupa toda, champôs e perfumes, por iniciativa própria. Eu só soube disso cá. Isto foi uma aprendizagem. Os pais disseram que houve miúdos que mudaram completamente de atitude, como deixar comida no prato. A escola diz e obrigada a decorar para pôr num teste, aqui vive-se isso.

 (...)

Blog 100 fronteiras: [Na Palestina] a nível da indumentária feminina, eles fizeram algum requisito?

Luís: Não, nada. O único sítio onde me fizeram requisitos para o coro entrar foi no Vaticano. Eu só estou a dizer o que se passa, não estou a inventar nada. Do Vaticano recebi um fax, na altura era fax, com as medidas das saias das senhoras. Na Palestina, que é aquele tal mundo apertado e fechado para a mulher, ninguém me disse nada.
Blog 100 fronteiras: O que é que tira de melhor desta experiência profissional?  
Luís: Do ponto de vista profissional correu bem, do ponto de vista social acho que ainda bateu mais certo. Depois de ter ido à Palestina nunca mais fui para lado nenhum com ideias pré-concebidas. Ainda agora, para a Coreia do Norte, não fui com ideia nenhuma pré-concebida, por mais que me “encharcassem”. Embora no subconsciente haja sempre alguma coisa, fui preparado para que aquilo que se dissesse fosse tudo mentira, como se veio a verificar na maior parte das situações. Nisso a Palestina mudou muito a minha pessoa, passei a encarar as coisas dando o benefício da dúvida e quando lá chegar logo vejo. Por exemplo, já estive três vezes na China e (...) quando eu comia qualquer coisa, não sabia bem o que estava a comer, mas é curioso porque eles só sabiam traduzir porco, vaca, galinha e camarão. Quando aparecia mais qualquer coisa que eu sabia que não era nada disto, eles diziam “não sabemos traduzir”. Houve uma vez que fui jantar com uns tipos da televisão chinesa em Changai e um dos produtores é de Castelo-Branco e tinha o seu próprio. Foi a única vez que tive a possibilidade de saber o que é que comia. Daí tirei a conclusão de tudo o resto. Portanto, comi de entrada alforreca grelhada, depois sopa com pedaços de sapo e cabidela de tartaruga.

Blog 100 fronteiras: O cão não entrou?

Luís: Não. Cão comi na Coreia do Sul. Na Coreia do Sul não gostei da alimentação, desesperei de tal maneira que tive de ir comer cão.

Blog 100 fronteiras: A que é que sabe cão?

Luís: É bom. Aliás, eu quando vim da Coreia já não olhava para os meus cães da mesma maneira, especialmente quando eles passavam em frente ao forno. (Risos) Agora fora de brincadeiras, é bom. Quer dizer, eu não sei se era bom, porque como eu não gostei do resto, aquilo tinha hipóteses de ser melhor. Comi salsicha de cão.
Na Coreia do Sul também foi uma experiencia engraçada. Eles não têm camas. Quando cheguei ao hotel com o coro, fui o primeiro a subir. Abro e vejo uma sala ampla, pensei “estes tipos deram-me a chave da arrecadação”. Fui lá abaixo reclamar. A cara de espanto deles quando eu disse que não tinha camas... Pensaram “este tipo é louco! Claro que aqui não há camas, dorme-se no chão”. Então tínhamos lá os armários com os edredons para pôr no chão, era assim que a gente dormia. (...) Os primeiros dois dias doeu, a partir do segundo dia o coro aguentava oito horas de ensaios em pé e não doía as costas a ninguém. (...) Alimentação, outra coisa, na Coreia do Sul eles não comem por prazer, é em função do que faz bem. Tive pequenos-almoços incríveis: bambu com picante e um osso para roer, para a dentição. Eles lá comem em função do que precisam e passou a dar-se um fenómeno incrível com o coro. Nós todos, cada um a seu tempo diferente, tínhamos horas certas para ir à casa de banho. (...) O organismo começou a regular. Havia uma coisa engraçada quando eu marcava ensaios, havia sempre um que dizia “Luís, 16.20h é a hora de eu ir à casa de banho”. A prova de que isto deve funcionar, foi que no último dia atravessámos a Coreia toda de autocarro para irmos para o aeroporto. Como tínhamos algum tempo, dei autorização para irem ao McDonald’s. Foi o pânico. Quando aquilo entrou cá dentro, o McDonald’s não tinha casas de banho suficiente para todos. Invadimos lojas, invadimos tudo. Foi o desarranjo total!

Blog 100 fronteiras: Luís, se lhe pedisse para destacar três momentos altos da sua vida profissional nestes contextos, quais seriam?

Luís: É sempre chato porque a tendência é ir-se para o estrangeiro pelo facto de ser o menos provável de ter acontecido, mas a Palestina em primeiro lugar, disso não há dúvida nenhuma. Quando fui recebido pelo Papa (João Paulo II), também foi importante e a Coreia do Norte. São aqueles sítios que pareciam improváveis. Às vezes ainda me pergunto como é que me vieram buscar da Coreia do Norte, aqui. Eu não sei... Na Coreia do Norte também há uma situação, não foi só o facto de ser a Coreia do Norte. Eles têm três obras dedicas a cada um dos líderes: aos dois que já morrera e ao que está vivo. Eu fui o primeiro estrangeiro a dirigir as três. Eles nunca tinham confiado as três a uma mesma pessoa. (...) Não deixa de ser curioso porque eu ia só para dirigir duas, e digo “só” mas já era mais do que alguém tinha conseguido. A seguir ao primeiro ensaio eles disseram-me logo se eu não me importava de dirigir a terceira.

Blog 100 fronteiras: Qual foi o contexto em que foi recebido pelo Papa?

Luís: Foi que as minhas obras sacras foram para a biblioteca do Vaticano. Porque é que isto aconteceu? É simples, porque eu achei que devia ser recebido pelo Papa e fiz a coisa mais simples, telefonei a dizer que queria ser recebido pelo Papa. É o que ninguém se lembra de fazer! Se eu não telefonasse ele não sabia que eu queria, parece-me lógico. (Risos)

Blog 100 fronteiras: Como é que foi esse momento?

Luís: Também é uma mistura um bocado estranha. Eu lembro-me que na véspera, quando me deitei, pensei que se calhar isto nem estava a acontecer, “amanhã vou ser recebido pelo Papa. Eu?!” Ele era uma pessoa simpática. Uma das coisas que recordo é que ele falou logo em Português para mim. (...) Quando o fui cumprimentar foi uma simpatia.
Blog 100 fronteiras: Se lhe perguntasse qual o desafio que queria receber, qual era?
Luís: Nunca pensei nisso, nem penso nisso...

Blog 100 fronteiras: Está à espera que chegue um próximo?

Luís: Sim. Ele aparece. Eu lembro-me quando acabei o concerto na Palestina que estavam jornalistas connosco e me perguntaram “então maestro, qual é a próxima?” e eu disse que a próxima era amanhã, segunda-feira. Não estou preocupado com isso. Há duas coisas na vida que nunca me preocuparam: o que vai acontecer amanhã, embora eu prepare o que vai acontecer, e é aquilo que as pessoas pensam de mim. Eu chego a imensos lados para ir a reuniões que não me deixam entrar, dizem “desculpe, estamos à espera do maestro”. Costumo dizer que a sorte é algo que é preciso, e eu também tenho tido muita, mas ela também se procura. Não vale a pena ficarmos sem trabalhar e sem fazer nada à espera que elas aconteçam, porque elas não aconteçam. Nunca desisto. Eu desisto de desistir. Isso é fundamental para mim, mas as coisas acontecem.

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