O português que fez história na Palestina


Eles por Lá - Ep.2 (parte 1)


O Luís Cipriano é músico e compositor e alia as viagens pessoais e profissionais. Já visitou mais de 45 países, mas são três momentos que destaca na sua carreira: estreou uma obra na comemoração dos 2 mil anos do nascimento de Cristo na Palestina, foi recebido pelo Papa João Paulo II e foi o primeiro maestro do mundo a dirigir os hinos dos três líderes da Coreia do Norte.

Esta entrevista divide-se em duas parte, completamente imperdíveis.


O português que fez história na Palestina


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Blog 100 fronteiras: Olá Luís. Atrevo-me a dizer que é um dos maiores e melhores compositores e maestros do nosso país e que isso é visível pelo percurso e carreira que tem construído. O mais recente foi dirigir a orquestra da Coreia do Norte. Gosta de viajar a nível pessoal, mas isso passou também para a parte profissional.

Luís: Sim, a nível profissional não tinha mesmo alternativa. Sempre que recebo convites tenho de ir a esse local e adapto-me com alguma facilidade a vários fusos horários e alimentação variada. A única parte do mundo onde ainda não estive foi na Austrália. Aprendo imenso em todos os sítios e costumo dar como exemplo que na Coreia do Norte o guia não sabia o que era “roubar”. Parece uma coisa inacreditável mas ele é que está certo. Acabamos por aprender em todo o lado e isso faz-nos crescer. Considero que, na profissão de músico, se faltar meia hora para morrer, ainda há qualquer coisa para aprender.

Blog 100 fronteiras: Em quantos países já esteve?

Luís: Nunca fiz bem essas contas, mas juntando a parte profissional mais as minhas férias, deverá rondar os 45/46 países, talvez perto dos 50.

Blog 100 fronteiras: Só o Coro Misto da Beira Interior já esteve em 28 países. Hoje vamos abordar isso, quando estiveram na Palestina e o contexto em que estiveram. Nenhum português e nenhuma outra pessoa no mundo teve essa oportunidade, quando no ano 2000 estreou uma obra para marcar a celebração dos 2 mil anos do nascimento de Cristo, em Belém, na Palestina.

Luís: Sim. Isso foi um momento marcante por vários aspetos. Começou pela parte de decidirem que era eu. Na embaixada da Palestina disseram-me que o Yasser Arafat (Ex-Líder da Organização para a Libertação da Palestina) queria que fosse eu, mas havia pressão da Noruega, Finlândia, Estados Unidos, França e Inglaterra, que se propunham a pagar todos os custos, e isso era uma coisa que nós não tínhamos possibilidades… Pensei que o facto de estarmos aqui no cantinho da Europa podia servir de fatura cultural, mas entretanto eu já estava no regresso a casa e recebo uma chamada a dizer que o Arafat queria que fosse eu o compositor. Na altura não tive bem noção da importância do evento. Só tive alguma já no próprio dia em que me disseram que o concerto ia ser transmitido por 46 estações de televisão, nenhuma portuguesa. A Catedral e a Praça da Manjedoura estavam “à pinha”, Belém estava fechada, com ecrãs gigantes espalhados dentro e fora da cidade, para transmitir o concerto em direto. Só aí é que tive alguma noção da dimensão e agora sei que só daqui a quase mil anos é que outra pessoa vai ter essa oportunidade e experiência.

Blog 100 fronteiras: E quanto lhe caiu “a ficha” de que ia estar naquele marco histórico?

Luís: Há uma coisa que nunca se deve pensar antes de entrar, que é “tive a oportunidade de chegar até aqui, se agora correr mal, a queda será por aí abaixo”. Não devia ter pensado naquilo, porque nos primeiros 10/15 segundos eu não estava completamente concentrado e podia-se ter dado uma desgraça, mas depois foi tentar disfrutar ao máximo.

Blog 100 fronteiras: O Luís fez uma primeira viagem para ver e se certificar das condições. Como foi essa visita?

Luís: Fomos três pessoas da Associação (Associação Cultural da Beira Interior) para analisar o que era a Palestina e os sítios dos concertos. Fiquei logo entusiasmado quando lá cheguei pela maneira como fui recebido, as condições que encontrei nos teatros e pelas pessoas em si. Percebi logo que as coisas não eram bem como se diziam. Depois no regresso para Lisboa, estive três horas detido no aeroporto de Tel Aviv. Trazia imensas coisas árabes que me tinham dado. Queriam saber o que estava ali a fazer, foi um massacre total. Pedi um tradutor em francês e tive a sorte de ser um antigo músico, que percebia perfeitamente o porquê de eu estar ali a querer ver as condições em que ia fazer os concertos. Eles queriam que eu provasse que era compositor, que tinha estado a jantar em casa do embaixador. Basicamente, vontade de implicar. Quando acabou aquele tormento, ofereci ao tradutor um CD que tinha comigo como forma de agradecimento. Fui acusado de estar a suborná-lo e voltei a ser detido. Disse aos meus dois colegas que quando chegassem a Frankfurt tinham de ligar ao José Sócrates para ele contactar com a embaixada e me ajudar a sair dali. Não sei o que se passou, mas assim que ouviram falar nele mandaram-me embora. Ou seja, nós fomos a pensar que tínhamos de ter cuidado na Palestina e todas as chatices foram em Israel, tanto quando estávamos os três, como quando fomos todos. Os nossos instrumentos chegaram a Madrid todos partidos e as caixas estavam intactas.

Blog 100 fronteiras: A nível visual é visível a diferença entre Israel e a Palestina?

Luís: É contrastante, a 100%. Logo a primeira vez que fui e apanhei um táxi do aeroporto para Belém, percebeu-se quando é que acabava Israel e começava a Palestina, que era onde acabava a luz e o alcatrão. O próprio taxista estava com medo de entrar na Palestina. O clima é de muita tensão e nós fomos numa altura pacífica, por causa dos dois mil anos do nascimento de Cristo, mas notava-se que havia uma tensão disfarçada. Estavam televisão de todo o mundo e ninguém queria parecer o “mau”, mas logo em janeiro rebentou uma nova intifada. Houve bombardeamentos para a Faixa de Gaza, os palestinianos responderam, ainda que me pareça uma luta desigual, de pedras contra mísseis.

Blog 100 fronteiras: Aqui não se toma um partido. Quando se vai tem de se ir com a mente aberta para ver os dois lados...

Luís: Claro. Houve pessoas no coro e da orquestra que ficaram chocadas em Nablus. Quando acabou o concerto, a população estava tão eufórica, eles festejam a disparar tiros para o ar. Quando saí deram-me uma pistola para a mão para eu festejar e eu festejei também a dar tiros para o ar.

Blog 100 fronteiras: Uma das curiosidades é que eles assobiam em pé para comemorar e o coro não estava preparado para isso...

Luís: Isso foi na Faixa de Gaza. O concerto não estava a correr bem em termos técnicos, porque era um teatro novo. Na Faixa de Gaza quando nós chegámos estava tudo destruído, apenas estava um edifício em pé que era o teatro. A tecnologia era nova para a altura e os técnicos palestinianos nunca tinham visto aquilo, então quando cantávamos abriam-se as cortinas, fechavam-se as cortinas, acendia-se a luz, desligava-se a luz... Depois avisaram-me que quando eles gostam assobiam, se gostarem muito assobiam de pé. A dada altura estavam em cima das cadeiras. O pessoal do coro entrou em pânico. Eu disse que estava tudo bem, mas eles acharam que só os estava a tentar acalmar.
Na Faixa de Gaza houve uma altura complicada. Nestes anos todos em que estou com o coro, e vai fazer 30 anos, foi a única vez que senti que era responsável por aquela gente toda, nunca tive situações em que tive de pensar assim. Aquela “malta” de 17/18 anos nunca tinha visto uma mulher ocidental ao vivo. Eu tinha dito às miúdas que não queria ninguém de saia, só com calças, precisamente porque fui avisado que há 20 anos que não ia nenhum coro estrangeiro lá. Esqueci-me do pormenor de que as calças de ganga tornam visível a forma da mulher. Os “tipos” passaram-se. Eram uns 500 ou 600 e começaram a apalpar as miúdas. Gerou-se alguma confusão. Eu ia com o presidente da Câmara de Gaza e tive de ter uma posição mais dura, para ele parecia uma coisa normal.

Blog 100 fronteiras: As pessoas de lá têm abertura para falar sobre os problemas?


Luís: Sim. O Mohamed era o responsável pelo hotel onde eu estava e foi aí que me apercebi da disponibilidade dos palestinianos. Eu cheguei ao hotel e perguntei se tinham máquina de café. Disseram que não mas que iam comprar. Achei estranho, mas meia hora depois já tinham a máquina. Entretanto perguntei se tinham cerveja, disseram que não mas que iam comprar. Trouxeram uma daquelas arcas verticais e encheram aquilo de cerveja. Nesse dia dava o Benfica, eu vi lá uma televisão e perguntei se dava para ligar. Disseram que dava para ligar mas que não tinham antena... Pensei para que queriam uma televisão se não tinham antena. A resposta foi a mesma, que iam comprar. Naquele dia foram três ou quatro vezes às compras  para ter aquilo que precisava. Eles foram comprar uma parabólica manual, então estava eu na receção, um tipo na rua e outro que foi para o telhado e que ia rodando até haver sinal. Depois eu gritava para o que estava na rua que, por sua vez, gritava para o do telhado. A verdade é que eu vi o Benfica em Belém, eles conseguiram que eu visse o jogo. Num dia percebi logo a maneira de ser deles. Não era só para agradar. Quando chegámos fomos a um restaurante para jantar, perguntámos se tinham cartão visa e eles disseram que não, nós também só tínhamos dólares e não devia chegar para pagar o jantar. O senhor, que não nos conhecia de lado nenhum, disse para voltarmos lá no dia seguinte para pagar. Eu nunca tinha visto isto em lado nenhum. A maneira como eles acreditam no ser humano foi algo que me tocou muito. Foi um conceito completamente diferente de estar em sociedade.  



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